Um homem cheio de pressupostos - parte 2
- André Luis Mazzoli
- 2 de out. de 2020
- 6 min de leitura
Falei antes sobre meu pai para exorcizar fantasmas que se obstinam a me perturbar (Um homem cheio de pressupostos – 16/07/2020). Achei que pelo fato de me expressar sobre ele, pensamentos de penitência deixariam de intimidar meus pensamentos. Mas lembro dele constantemente. Sei que ele foi o pai que poderia ter sido naquele momento. Pra ele poderia ser satisfatório. Mas para mim: pai à deriva. E durante muito tempo, pensei nele como a figura paterna que eu não queria ser. Por mais que eu dissimule perdões a nós, não parece sincero. E como uma voz dentro da minha cabeça me faz acreditar nisso? Não é?
Depois que decidi que não queria mais viver com meus avós, e que queria morar com minha mãe, meu pai guardou uma mágoa de desamparo. E ao contrário da esposa de Ló, não virei uma estátua de sal. Minha vida já era diferente. E meu pai desde então não me ligou mais.
Após treze anos, quando meu avô já havia falecido, fiquei sabendo que minha avó havia sido “jogada” num asilo por ele. Logo depois fiquei sabendo que ele havia vendido a estranhos o jazigo dos Mazzoli no cemitério Nossa Senhora do Desterro. E isso me deixou puto. É muito difícil controlar sua raiva quando outros não controlam sua estupidez. Minha avó estava muito velhinha, e se viesse a falecer não seria mais enterrada com meu avô. Pra mim não faz tanta diferença onde serei enterrado. Mas pra eles fazia. É o que queriam. E o que é certo é certo. É difícil respeitar nosso desejo pós-morte, mesmo quando já está tudo pronto, droga?!
Quando liguei no asilo, pude ouvir murmurinhos das atendentes, quando disse neto de quem eu era. O que me deixa intrigado não é pelo fato de ser neto da Dona Helena, mas sim filho do senhor Ivan. Elas disseram que por ordem do filho dela, não poderiam me dar qualquer informação. Pra mim, já era suficiente pra saber que ela estava lá, e viva. Peguei o pouco dinheiro que tinha, pedi folga no trabalho e toquei para Jundiaí. Ao chegar lá senti o desconforto nas enfermeiras e atendentes. Elas deviam pensar: Se o filho dela é o demônio, seria esse rapaz a profecia? E devido à demência que já havia lhe acometido, ela não me reconheceu. Mas por vezes, quando eu falava quem eu era (várias e várias vezes) ela gritava meu nome, sorria, segurava minhas mãos tremendo e chorava. E foi debaixo de um ipê amarelo que ficava no pátio do asilo, que vi meu pai batendo boca com funcionários. Imaginei-o dizendo: “Por que deixaram ele entrar?” ou “Por que não me avisaram que ele estava aqui?”. E era óbvio que isso poderia acontecer. Uma coisa que nunca gostei foi de barraco. Mas naquele momento, por mais que minha pressão pudesse estar derramando por minhas orelhas, meus átrios e ventrículos estavam quase em colapso, e minhas mãos tremiam como um portador de mal de Parkinson, eu estava pronto pra cair com a rocinha inteira sobre ele.
Mas, enternecido, ele chegou até mim e me estendeu a mão. Por um instante eu hesitei um pouco. Acho até que ele pensou que eu não retribuiria a cortesia. E até pensei mesmo em não apertar. Mas se até Kim Jong Um e Donald Trump apertaram as mãos (O que foi muito falso), por que não? Diplomacia, né? Deixamos os rancores de lado pela minha avó, trocamos telefone e por fim, nos abraçamos. E aquela foi a última vez que vi meu pai vivo.
Nos meses seguintes, nos falávamos toda semana. E parecia até que toda aquela cólera que nos separava foi se dissipando. Até mandei a ele, no dia dos pais, um porta retratos com fotos dos netos (Alice, Ana Giulia e Guilherme). Até que na manhã de 22 de março de 2015, meu pai me ligou perguntando se eu pretendia visitar minha avó. Eu respondi que não sabia quando iria novamente. Foi quando ele disse: Então não precisa mais, pois ela faleceu! Eu estava pronto pra rapar o tacho e voltar pra Jundiaí. Mas ele disse que não precisava, pois iria enterrá-la naquele dia mesmo e sem cerimônia alguma. E depois disso nunca mais me ligou nem atendeu minhas ligações.
No ano seguinte, numa típica tarde de sábado, faltava um mês pra Elisa nascer. E eu lavava o carro quando meu sogro chegou, pediu para entrarmos, nos sentamos e, sem cerimônia, disse que meu pai havia falecido. E que a vizinha da casa da frente, onde ele morava, o encontrou. Sinto-me mal até hoje por não ter tido a reação que achava certa. Fiquei estático e cheio de dúvidas. Como eles souberam antes que eu? Qual era a causa? Como o encontraram? Como me encontraram? Quando seria o enterro? E somente à noite, enquanto eu arrumava minha mala chorei. Era um misto de tristeza e muito ódio. Eu o chamei tantas vezes pra passar um tempo comigo em Caldas. Mas, ele nunca foi.
Não sei quais os parâmetros que usam, mas, os peritos constataram que ele estava falecido há, pelo menos, uma semana. Então, eu deveria chegar lá até segunda feira, ou ele seria enterrado como indigente. E essa foi minha segunda revolta: Ele tem nome e sobrenome.
Fomos eu e minha mãe na segunda feira para Campinas e tocamos para Jundiaí, onde fomos recepcionados pelos primos de meu pai (que nem sabia que existiam). E de lá já fomos ao IML. Lá encontrei uma namorada de meu pai (Que também nem sabia que ele namorava). Ela segurava uma pasta de couro preta que me entregou dizendo ser dele e que agora era minha. Ao entrarmos, preenchi as documentações exigidas. E Não queriam me deixar entrar para reconhecê-lo pelo estado que ele estava. O que eles não sabiam é que eu estava armado em verbos que sequer conhecia. Entrei quase que na marra. Não vou dizer como ele estava quando tiraram o lençol. Mas menos de cinco segundos foram suficientes para eu apenas dizer: É ele! Podem cobrir!
Eu me sentei no corredor do IML e chorei como uma criança. Minha mãe que estava comigo, chorou também, e me levantou: É hora de ser forte! Tocamos para a delegacia para registrar o Boletim de ocorrência; depois ao cartório para fazermos a certidão de óbito e por fim ao cemitério. Obviamente, não houve velório. E lá, havia seis pessoas para prestigiar a vida de meu pai. Os coveiros colocaram-no numa gaveta, cimentaram e saíram. Eu peguei um pedaço de plástico que havia no chão e escrevi seu nome e as datas de seu nascimento e sua morte. E isso eu chamo de momento mais triste da minha vida.
Na volta passamos onde ele morava. E no corredor que dava sua casa de fundos, ainda era possível sentir o cheiro de podridão. Na casa, as paredes tomadas por mofo, um colchão sem lençol ou travesseiro no chão, um prato de jantar que servia de cinzeiro, embalagens de doces e garrafas vazias de refrigerante nos cantos, um fogão que não era mais possível interpretar sua cor, e um cheiro forte de urina que vinha do banheiro. Pensei que estava indo à casa que era do meu pai, mas acabei chegando à Cracolândia. Mas, quando olhei a parede do fundo da sala, vi a única coisa que aparentava estar limpa e nova: O porta-retratos que havia mandado a ele. A inquilina da casa da frente me perguntou o que eu fazia com as coisas da casa. Eu peguei o porta-retratos que estava na parede e disse: Jogue tudo fora! Não quero mais nada daqui que me lembre o que aconteceu. Quimera idiota. Pois me lembro dele quase todos os dias. E hoje, o porta retratos que estava na parede dele, agora esta na minha, mas com fotos apenas das minhas meninas.
Demorei muito a escrever esse texto, e ele sequer tem a cara do que costumo escrever ou com a bipolaridade. Mas foram as linhas mais difíceis que já fiz. Foram idas e vindas, varias revisões, e chorei muito durante todo o processo. Meu pai era um homem problemático. Fumava muito, era diabético, sedentário e sozinho. Não tinha papas na língua quando não gostava de algo e nem se esforçava para criar vínculos sentimentais com qualquer pessoa. Inclusive comigo. E hoje, por mais que eu não queira, eu me enxergo demais nele, e me culpo muito por ter visto o abismo em que ele se afundava. E não ter feito nada.
Comments