O espírito sem luz (parte 2)
- André Luis Mazzoli
- 13 de out. de 2020
- 4 min de leitura
(Pra entender o que vem agora é bom ler a primeira parte)
Como previsto meu namoro com a Herley não deu muito certo. O tempo passou e percebemos que vivíamos em épocas totalmente diferentes. Enquanto eu corria pra casa pra pegar um novo episódio dos Cavaleiros do Zodíaco, elas estavam na vibe de "Malhação" e dos filmes noir. Usávamos dialetos diferentes e ela com roupas super descoladas.
E nisso nossa amizade também esfriou e somente fomos nos distanciando. Eu continuava com meus amigos da rua e com os perdedores da escola, que assim como eu, também viviam na minha época. E me sentia passar por um loop temporal. Já a Herley deu um salto atmosférico no tempo com um estiloso duplo twist carpado invertido às avessas, e passou a andar com meninas mais velhas da rua, e assim como eu, optou por meninas que estavam vivendo a mesma fase que ela.
Aquilo não me deixou desatinado. Mas me sentia atônito e esquecido.
Até que um dia ela foi me convidar para sua festa de quinze anos. Mas fiz pouco de sua gentileza e esfreguei o convite na bunda (figuradamente falando, claro). Por fim acabei não sendo convidado. E então, aquilo ateou mais fogo na minha fogueira.
Motivado pelo espírito do rebelde sem causa que vive dentro de mim, em pouquíssimo tempo elaborei um plano de destruir a festa dela. Consegui três cúmplices, que na verdade nem tinham argumento de porque fariam isso pra mim. Acredito que eram garotos que partilhavam do desejo de ver um circo pegar fogo. Como eles foram convidados, entrariam na festa e colocariam 20 ml de pimenta dentro do bolo da debutante. Foi tudo muito metódico. E assim como o planejado foi minuciosamente executado.
Consegui a seringa na caixa de primeiros socorros da minha mãe. E na casa de mineiro pode-se esperar uma pimenta com escala de ardência necrose labial nível hard. Passei a arma a um dos comparsas, que circulou pela festa com ela no bolso. Enquanto os outros dois distraiam os demais ele enfiou a seringa no bolo e injetou o veneno. Foi um plano primoroso. Transgressivo, mas, infelizmente, primoroso.
Cantaram parabéns, cortaram o bolo, e comeram-no. Adverti aos três que ao menos simulassem comer o bolo para não chamarem atenção ou suspeita. Eu sentei do lado de fora, num tronco ao chão do outro lado da rua. E fiquei entusiasmado e satisfeito quando comecei ouvir os gritos e vi as primeiras pessoas saírem da festa. Alguns saiam esfregando os olhos vermelhos, outros bebiam o que tivesse pela frente (Se tivesse um copo de urina, certamente eles beberiam). Lamentavelmente o padeiro foi responsabilizado. Algum tempo depois ouvi comentários que ele realmente assumiu a culpa. Disse que não percebeu a troca dos ingredientes. C'est la vie! Foi culpado de estragar a festa debutante da garota. Na minha cabeça daquela época, não daria para fazer um omelete sem quebrar alguns ovos.
Após um mês, num dia em que eu voltava da escola, minha mãe, neutra, absolutamente poker face, pediu-me que eu tomasse um banho, pois, iríamos sair. Pra minha surpresa fomos à casa de um vizinho que morava na esquina com o beco da rua. E pra minha surpresa parecia que todas as pessoas que moravam na rua cabiam na sala de estar dele. Naquele momento, com todos me olhando, com suas sobrancelhas franzidas, lábios pressionados e queixos erguidos, bem ao estilo Paolas Bracho, numa combinação de raiva, aversão e desprezo, eu sabia que eles também sabiam.
Eu fui o último a chegar ao que parecia ser a deliberação do que havíamos feito. E mesmo nessa situação consegui deslocar-me para outro lugar. Não conseguia para de pensar: Mas como? Chamaram o Crime Scene Investigation? Droga, devo ter deixado minha digital na seringa.
Naquele momento tive que admitir, explicar meus motivos, e me desculpar pelo que havia feito. Ouvi pessoas que me chamaram por nomes que fiz questão de esquecer, e algumas expressões que posso até dizer serem no mínimo interessantes. Mas espírito sem luz...
Em casa descobri a utilidade do chicote de cavalo que ficava pendurado na parede da sala. Foi a primeira e última vez que senti sua consistência. Minha mãe me bateu chorando e me colocou de castigo por um mês. O que, pra mim, não foi um castigo por reclusão, mas um período de reclusão para reflexão. Minha psicóloga usava o mesmo método pra que eu chegasse às conclusões sozinho. Por um tempo apenas refletia como os vilões dos filmes que eu via e admirava. Como? Como descobriram? Um dos três teria que ter dado com a língua nos dentes. É típico do vilão contar o passo-a-passo de todo seu plano funesto. Porém, depois, pouco disso me importava mais. O tempo a reflexão moral que tive veio como uma porrada.
Fizeram outra festa pra Herley, pra reparar o terror da festa anterior. Óbvio que dessa vez nenhum dos quatro havia sido convidados. Na verdade, nunca mais fui convidado para uma festa na rua. É como se eu fosse aquele convidado que levava Guaraná Dolly pra festa.
Por inúmeras vezes pensei em procurar pela Herley para pedir-lhe desculpas. Mas, as oportunidades passaram. Anos mais tarde o pai dela faleceu devido um câncer e então eles foram embora. E desde então nunca mais a vi.
Algumas décadas depois, um homem já formado com minhas responsabilidades, duas filhas mulheres, o peso do que havia feito ainda era muito maior. Até que, de prontidão, procurei-a nas redes sociais. Não era possível que na facilidade que temos hoje, com este leque de possibilidades, não conseguiria encontrá-la. E a encontrei. Tive uma nova oportunidade de tentar reparar em palavras toda aquela mágoa, vergonha e arrependimento, sinceros, que ainda carregava dentro de mim. E a Herley, em poucas palavras me perdoou.
Mas, o mais triste, é que eu preferiria que ela não tivesse me perdoado. Para que eu pudesse continuar carregar essa mácula. Pois toda vez que peço desculpas, fico pensando se realmente estou sentindo remorso pelo que fiz ou se somente quero me livrar da bagagem de excremento que causei. Carregar minhas merdas me faz refletir mais, e isso me faz mais humano.
Comments