A garota do outro lado da rua (parte 1)
- André Luis Mazzoli
- 5 de out. de 2020
- 4 min de leitura
Uma coisa que me traz um certo jubilo, e que me faz bem canalha, é o prazer em rir da desgraça alheia (claro que quando a pessoa é portadora de tal merecimento) (E vai dizer que vocês não fazem isso quando um babaca leva um tombaço quando decidem inteligentemente desafiar as leis da física e empinando a moto?) . Bem, pra não ser injusto, trago a vocês um constrangimento meu.
Quando eu tinha quatorze anos, era apaixonado por uma menina da minha rua. Para preservar sua identidade vamos chamá-la de Herley.
Não posso dizer que Herley era um manancial de beleza e brandura, mas quando me mudei pra Brasília foi um dos primeiros fascínios que tive.
Numa noite de festa no conjunto "S" da QNP 12, encorajado por meus amigos, e pelos efeitos, até então desconhecidos, que um copo de cerveja poderia causar num organismo casto do álcool, escrevi uma carta a ela dizendo tudo o que sentia e coloquei na caixa de correio de sua casa. Menos de uma hora foi suficiente para perceber a imbecilidade que havia feito. De todas as alternativas possíveis a que eu mais temia era que seus pais pegassem a carta ao invés dela.
Antes eu passar pelo constrangimento de saber que todo aquele sentimento que eu nutria não era mútuo, do que ser convocado a conversar com seus pais. Já até me preparava psicologicamente pra ter que me justificar a eles. Já havia pensado em inúmeros pretextos para me legitimar. Á noite sequer conseguia pregar os olhos do tamanho desalento que sentia. Mas uma parte muito remota do meu cérebro tentava conter todos aqueles impulsos de desespero com duas alternativas possíveis. 1) poderia colocar fogo na casa dela. Mas achei melhor não. 2) eu precisava pegar aquela carta antes que qualquer um.
Desde o começo o plano era o cerne: Ela irá encontrar a carta e vai dizer que sente o mesmo por mim. Ah quimera! Não deu outra. Fui chamado a casa dela pela mãe dela. Drogaaaaaaaaaaaaaaaa! Não tive tempo de fazer qualquer plano pra pegar a carta de volta. Já estava até pensando nos galões de gasolina. Quando cheguei, ela se sentou, colocou a carta sobre o sofá e pediu que eu me sentasse. Eu já a imaginava dizendo: "Agora você vem até mim e diz: "Don Corleone faça justiça. Mas não pede com respeito, não oferece amizade. Você nem mesmo pensa em me chamar de Padrinho. Ao invés disso, você entra na minha casa, no dia do casamento de minha filha e, me pede pra matar por dinheiro.” (Vocês entenderam, né?) Na verdade pensei que o pai dela me diria isso. Mas ele não estava em casa. Entretanto, a mãe dela conseguia me dar mais medo que a máfia.
Herley estava apartidária e muda, sentada ao lado da mãe. Contudo, não tirava os olhos de mim. Ainda hoje não sei se por compartilhar do mesmo sentimento ou simplesmente por esmero. Ela me olhava tanto que minha cabeça parecia que entraria em erupção a qualquer momento. Até então eu estava sentado estático esperando. Quando finalmente a mãe dela me perguntou:
-O que é isso?
Pra mim era muitíssimo óbvio. Era uma carta. Tinha até envelope com remetente. Contudo, é claro que ela esperava uma resposta mais elaborada.
E nisso as palavras se conceberam pela minha boca de forma sábia:
- É uma carta!
Ela riu de canto de boca com um olhar de chacota (o mesmo olhar que faço quando uma barata está acuada no canto, e eu estou pronto pra dar uma chinelada), circundando olhares repetidos entre eu e a Herley.
E então enunciou um discurso infindável sobre responsabilidade e comprometimento. Ela então perguntou se eu realmente queria namorar a filha dela. Eu deveria novamente ter idealizado uma resposta sagaz, engenhosa e prática sem ser rude. Meu cérebro dizia: Vamos homem! Tenha culhões! Diga aquilo que deve ser dito e eu cuido do seu esfíncter. Mas a única coisa que consegui dizer sem gaguejar foi:
- Sim, se ela quiser!
E por dentro meu cérebro dizia: Meu Jesus Cristinho!
Mas convenhamos que ao menos foi prático.
E por mais extraordinário que venha parecer, a Herley disse sim.
Ouvimos mais um momento de pregação e por fim ficamos sozinhos e conversamos. E desde então éramos namorados. Todavia, o que cargas d'água realmente era namorar? Tudo o que eu sabia estavam nos filmes e nos livros. E Machado de Assis não me ensinou a beijar. E, além disso, como seria namorar aquela que até então era minha amiga?
Deve ser por isso que bêbados fazem tantas imbecilidades. Com isso descobri que para cada ser humano existe um grau de capacidade alcoólica. Ainda assim demorei anos pra descobrir a minha. E, ainda assim, extrapolei por algumas vezes minha capacidade ciente da merda que estava fazendo (Já houveram dias em que, sobre influência de uma cachaça chamada Chora Rita, fiz rolamento militar na pista do centro de Taguatinga, ou até entrei dentro de um bar e desafiei um homem a jogar xadrez nos berros (Meus amigos disseram que nunca viram um xeque-mate tão rápido) ou acordei pintado de tinta guache rocha).
Depois de alguns anos, já ciente da bipolaridade, e sob o controle de medicações, fui gentilmente coagido a não consumir mais bebidas alcoólicas. Ainda acontece de eu beber? Claro que sim! Sou bipolar. Em dias de mania quem controla a gente? Mas sempre ciente que em dias de cachaça não rola medicação. Hoje me sinto mais vivo, consciente dos meus direitos e responsabilidades, mas acima de tudo com direito à vida. Saber me divertir sem que isso prejudique outras pessoas. E desde então nunca mais coloquei uma carta pra alguém na caixa de correios.
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